A Beleza das Pequenas Coisas

Lídia Jorge: “Os escritores estão debaixo da mesa a ver que migalhas caem e quem vive delas. É preciso estar com quem vive de migalhas”

Durante os últimos dois anos a prestigiada escritora Lídia Jorge escreveu um romance que partiu de um pedido da sua mãe, pouco antes de morrer. Confinada num lar de idosos, pediu que a obra se chamasse “Misericórdia”, para que as pessoas se tratassem com mais humanidade e empatia. E Lídia escreveu o seu livro mais íntimo, uma exaltação da vida, da curiosidade, da sabedoria mesmo quando a morte espreita. Sobre a crise atual, a escritora, que faz parte do Conselho de Estado, afirma: “É errado um discurso triunfalista dos números quando as pessoas estão a sofrer muito. Há um contraste entre aquilo que é o discurso político e a vida das pessoas. É um reparo que faço ao Governo!” Ouçam-na no podcast “A Beleza das Pequenas Coisas, com Bernardo Mendonça

Lídia Jorge: “Os escritores estão debaixo da mesa a ver que migalhas caem e quem vive delas. É preciso estar com quem vive de migalhas”

José Fernandes

Fotojornalista

A escritora Lídia Jorge levou dois anos a escrever o seu novo livro “Misericórdia”, um sismo que nos deixa ensimesmados connosco e com as nossas pessoas mais queridas. E que, acima de tudo, faz ruir preconceitos, ‘idadismos’ e corações empedernidos. Uma obra que nos dá esperança e outras perspetivas sobre o último capítulo da vida. Não há nenhum romance como este, editado pela D. Quixote, que parte de um pedido de uma mãe à sua filha, quando entra num caminho mais estreito da sua existência.

Confinada num lar, no Algarve, Maria dos Remédios pediu à sua filha que escrevesse um livro que se chamasse ‘misericórdia’, para que as pessoas tivessem um maior entendimento e compaixão umas pelas outras, que fossem tratadas com mais humanidade e empatia. Pouco tempo depois, a 19 de abril de 2020, a mãe partiu vítima de Covid-19, e Lídia Jorge tomou para si esse pedido como uma missão literária. E escreveu um livro, tão brutal quanto esperançoso, que como ela descreveu “é sobre o esplendor da vida que acontece quando as pessoas estão para partir”. Eis um romance que é um triunfo da vida sobre a morte. E que nos faz calçar os sapatos de quem é velho num país que ainda é tantas vezes desumano, impaciente, arrogante, cego e surdo, com os que têm mais memória do que futuro.

O enredo passado num lar de terceira idade com o delicioso nome “Hotel Paraíso” enfrenta instantes de inferno e paraíso, mas vem provar que a vida só termina quando se morre e até lá há sempre espaço para a surpresa, para o inesperado, para o sonho, o afeto, a amizade, o amor, a beleza das coisas simples e para a curiosidade. Estará lua cheia esta noite? Quantas cidades tem o mundo? Qual o sentido da escrita e dos bons romances?

“Neste momento tenho a ideia de que há uma espécie de pacificação com a [sua] ausência. E fica uma espécie de voz, de presença fluída, que está por toda a parte. Já não precisa da roupa, dos sapatos, de nada material. À medida que ia escrevendo e a narrativa avançando tinha a ideia que lhe estava a fazer alguma justiça. Que era trazer para dentro das páginas o exemplo de uma pessoa que sabe encarar a última parte da vida. Que sabe viver a vida como se fosse eterna, a cada momento que passa. Colher da vida sobretudo a curiosidade e ter ainda sabedoria.”

O lançamento de “Misericórdia”, provavelmente a sua obra mais íntima, contou com a apresentação do cardeal e poeta José Tolentino Mendonça, que chegou a dizer que este livro “é um grito que precisa ser escutado, porque as nossas sociedades têm de se reconciliar com a nossa velhice.” E fez notar como uma romancista poderosa como Lídia Jorge encontrou num lar de idosos um país. Sobre isto a prestigiada escritora, comenta neste episódio:

“Concordo que há uma reconciliação que tem de ser feita. Não só no nosso país, no mundo. O sistema em que vivemos põe, a partir de certa altura, um risco nas pessoas e diz ‘esta é inútil’. Passam a ser um grande estorvo. Somos seres débeis toda a vida. Mas há dois momentos em que somos mais débeis, quando somos crianças e velhos. E hoje toda a atenção está virada para a criança. De tal forma, que o que se faz é socorrê-la de tal forma que a paralisa, para não se mexer, não ser criança. E para as pessoas idosas a atenção é diferente. E nos lares, há outra situação. Como não se paga capazmente aos cuidadores, eles têm tal rotatividade que é absolutamente perturbadora. E essas pessoas são recrutadas muitas vezes, não pelas suas melhores capacidades, mas por necessidade de trabalho e estão contrariadas. Por outro lado, há imigrantes extraordinários nestas funções. Recordo-me de um cuidador ucraniano que para falar com a minha mãe, que estava sentada, com dificuldade em levantar a cabeça, se colocou de joelhos para ela. Nunca mais vou esquecer.”

Tolentino Mendonça recordou ainda que é seu fiel leitor e admirador desde os 16 anos quando leu “A Costa dos Murmúrios”, uma das suas obras mais premiadas que reflete a experiência de Lídia Jorge na África colonial, quando lá foi professora, em Angola e Moçambique. Neste episódio, a escritora regressa a esses tempos em África e revela como encara este novo revisitar da história e a ferida ainda aberta que é a guerra colonial e o colonialismo.

Ao longo deste podcast, Lídia aborda como encara o seu papel na literatura e qual o grande papel que vê nos escritores e escritoras.

“Os escritores olham para a realidade de olhos fechados a procurar a alma do mundo. Somos como fósforos, ardemos no escuro. E há quem tenha uma cabeça de fósforo maior ou menor, para iluminar o caminho. Somos testemunhas do tempo”.

Sobre as crescentes notícias sobre a crise e a pobreza, e a manchete do Expresso que dava conta do aumento de furto de comida em supermercados, onde pudemos ver latas de atum em caixas fortes de acrílico com alarme, bacalhau com alarme, garrafas de azeite com alarme, a escritora comenta sobre esses alarmes sociais estridentes: “Há no mundo os grandes roubos. Eles estão aí. E esses não são tratados como ladrões. E a pessoa que rouba uma lata de atum é um ladrão. Temos de olhar para isto com outros olhos e não deixar que a sociedade atinja uma situação de penúria imensa.”

O mundo e o país precisa de mais misericórdia? É por aqui que esta conversa em podcast começa.

Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha, com mistura de João Firmino (vocalista dos Cassete Pirata). Os retratos desta vez são da autoria de José Fernandes. A sonoplastia deste podcast é do João Luís Amorim.

Voltamos para a semana, com mais uma pessoa convidada. Até lá escrevam-nos, comentem, ativem as notificações, partilhem, classifiquem o podcast e, já sabem, pratiquem a empatia e boas conversas!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: BMendonca@expresso.impresa.pt

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